Por Clarice Ferraz
O setor elétrico brasileiro passa por uma crise severa. Do lado da oferta, a geração distribuída pode dar importante contribuição para mitigar os problemas ligados ao forte crescimento do custo marginal de longo-prazo da geração de eletricidade no País[1] e aos riscos de desabastecimento tão discutidos ultimamente.
Associado aos problemas de oferta soma-se o aumento da demanda. A tendência de crescimento da intensidade elétrica dos setores residencial e comercial se confirma. De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o consumo cresceu 4,9% em janeiro e 8,6% em fevereiro com relação ao consumo registrado no mesmo período de 2013. Ao olharmos para os setores residencial e comercial observa-se, em fevereiro, avanço do consumo de 13,3% e 16,6%, respectivamente, o que configura a maior expansão nos últimos dez anos (Brasil Energia, 24.04.2014). Tal crescimento provocou o deslocamento do horário pico de consumo que deixou de situar no período entre 18 e 20 horas para o período da tarde, de 14 às 16 horas, horário de calor intenso. É preciso dar atenção especial a esses setores de consumo.
A micro e miniGD no Brasil
A micro e minigeração se adéquam a unidades consumidoras de pequeno porte como residências e unidades comerciais. A Aneel considera que a “micro e minigeração distribuída consistem na produção de energia elétrica a partir de pequenas centrais geradoras que utilizam fontes com base em energia hidráulica, solar, eólica, biomassa ou cogeração qualificada, conectadas à rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras”.
O Brasil somente regulou a micro e minigeração distribuída conectadas à rede de distribuição há dois anos, a partir da edição da Resolução 482 (abril/2012) da Aneel. Entretanto, pouco foi visto em termos de difusão desses sistemas. Nessa postagem damos importância especial à tecnologia de energia solar fotovoltaica (solar FV), já discutida em uma série de postagens anteriores.
À época da edição da Resolução 482, a tecnologia solar FV, ainda longe de ser competitiva com outras fontes de geração centralizada, já havia alcançado a paridade tarifária com relação às distribuidoras, e diversos agentes clamavam por sua regularização. Acreditava-se que graças às suas vantagens (complementaridade com geração hidrelétrica, inserção urbana, rapidez de instalação, etc.) e, em face dos problemas do setor elétrico, a fonte fosse conhecer um rápido crescimento, ainda não observado.
Após um ano em que conheceu pequeno avanço, a fonte perdeu a paridade tarifária conquistada devido à redução de preços provocada pela MP 579. Contudo, há alguns meses a geração solar fotovoltaica (FV) reconquistou sua competitividade graças à disparada dos preços da eletricidade vendida pelas distribuidoras, assim como à contínua redução dos custos dos sistemas fotovoltaicos. Dessa vez, os ganhos de competitividade deverão ser duradouros.
Diante disso, muitos agentes do setor se interrogam sobre a lentidão da adoção dos sistemas FV. Em dezembro de 2013, o País contava com apenas 131 sistemas de mini e microgeração FV. Para alguns há um problema de insegurança regulatória e, para outros, o intervalo de tempo é considerado normal, pois processos de difusão tecnológica, segundo Rogers (2003), são caracterizados por trajetórias em forma de “S”, largo, começam lentamente e em seguida passam a crescer de maneira exponencial até saturação e estabilização de seu avanço. Nessa dinâmica, o processo de difusão deve passar pelas etapas de conhecimento, persuasão e decisão. Dada a timidez do avanço da inserção da tecnologia no Brasil, podemos assumir que o País se encontra ainda na fase do “conhecimento”.
Pesquisa de opinião realizada pelo Greenpeace e Market Analysis (2013), avaliando o nível de conhecimento da população brasileira sobre micro e minigeração distribuída, traz informações extremamente relevantes que comprovam que o Brasil ainda precisa avançar na disseminação do conhecimento para atingir as etapas seguintes de desenvolvimento e, possivelmente, alcançar a difusão dos sistemas FV. Entre os 806 entrevistados que responderam ao questionário (durante o período de 30/08/2013 a 07/10/2013), apenas 3 em cada 10 afirmam conhecer muito ou alguma coisa sobre o tema, como mostra a figura abaixo.
Figura 1: Resultado de pesquisa de opinião:
O quanto leu ou ouviu falar sobre essa proposta do governode microgeração de energia?
Fonte: Greenpeace e Market Analysis, 2013
Apesar da falta de informação sobre o marco legal em que se insere, em outra pergunta, cerca de 9 em cada 10 entrevistados consideram o tema relevante e gostariam de saber mais sobre ele. A pesquisa revela ainda que do ponto de vista do consumidor, “existem dúvidas sobre a vantagem econômica desse modelo e a adoção do sistema está condicionada aos custos de instalação”. Com efeito, 7 em cada 10 questionam as vantagens financeiras de adoção da microgeração de energia. A difusão da micro e minigeração distribuída conta com simpatia dos entrevistados, pois 87 % afirmam que adotariam o sistema se existissem linhas de financiamento com taxas de juros favoráveis. Com base nessa pesquisa constata-se que é preciso avançar na disseminação do conhecimento e que os consumidores veem os custos do sistema como importante barreira à sua adoção.
Nesse contexto, nos dias 8 e 9 de abril desse ano, a própria Aneel, organizou um seminário para discutir a micro e minigeração distribuída de modo a avaliar as barreiras à sua difusão, com destaque a energia solar FV, que responde por 79% dos sistemas de micro e minigeração instalados. A iniciativa da Agência é louvável, pois incluiu na discussão todos os agentes interessados no setor de maneira democrática e transparente. Quando lançada, a Resolução 482 já previa uma reavaliação de seu teor nos cinco anos seguintes oferecendo credibilidade e flexibilidade para o marco regulatório implantado.
Principais barreiras financeiras à difusão da micro e minigeração solar FV distribuída
Parte dos elevados custos dos sistemas fotovoltaicos se encontra no regime tarifário a que estão submetidos. Além dos equipamentos, também é tributada a operação dos sistemas, o que equivale a taxar a eletricidade gerada pelo próprio consumidor. As atividades de micro e minigeração são submetidas a impostos estaduais e federais. Os principais são o Imposto sobre Circulação Mercadorias e Serviços (ICMS), de âmbito estadual; e os federais, Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento de Seguridade Social (COFINS).
O PIS, cuja alíquota é de 1,65%, e o COFINS, cuja alíquota é de 7,6%, são submetidos ao “regime de tributação não cumulativo em que cada etapa da cadeia produtiva se apropria dos créditos decorrentes das etapas anteriores” (Aneel 2014:15). Os seus custos são calculados mensalmente e as distribuidoras utilizam métodos distintos para calculá-los. Algumas aplicam a tarifa final com impostos (PIS/COFINS e ICMS) sobre toda eletricidade consumida e, em seguida, deduzem os créditos relativos à injeção da eletricidade pelo consumidor. Outras calculam os impostos somente sobre o balanço final entre o que foi consumido via distribuidora e o que foi injetado na rede. Como o ICMS possui alíquota que varia entre 17 e 30%, o peso entre os dois modos de tributação afeta de maneira significativa o payback do investidor, desencorajando o investimento no setor.
Figura 2: Distorções geradas pela tributação da microgeração de eletricidade
Caso o entendimento da Resolução 482 venha a ser respeitado e se comparem efetivamente as quantidades consumidas e as exportadas (créditos físicos), a micro e minigeração atingem, ou mesmo superam, a paridade tarifária em diversos estados. Assim, a tributação de toda a eletricidade consumida da rede, sem levar em conta o volume que foi injetado, representa uma das maiores barreiras à difusão da micro e minigeração.
Outro ponto fortemente questionado é a possibilidade de comercialização para a rede de excedentes de geração. Investidores argumentam que se pudessem vender seu excedente, no lugar de ganhar somente créditos físicos como atualmente, já teriam realizado novos investimentos. Assim como nos demais países analisados, o micro e minigerador deveriam ser considerados produtores independentes de energia, permitindo-se, assim, a venda de seus excedentes líquidos de produção. Nesse sentido, é necessário desenvolver mecanismos específicos de comercialização do excedente, e oferecer incentivos à difusão que estimulem a compra de equipamentos que até então possuem pequena escala de produção e baixa viabilidade[2] econômica.
Em momentos de crise de oferta como o que vivemos atualmente, esse excedente poderia aliviar de maneira sustentável a pressão sobre o setor elétrico e ajudaria a manter a modicidade tarifária, desde que a eletricidade seja exportada a preços inferiores ao PLD em vigor.
Esperemos que o choque de realidade provocado pela explosão dos preços e ameaça de racionamento faça com que decisores políticos e consumidores percebam que já não vivemos mais em um país de abundância e que é preciso gerir de maneira eficiente os recursos dos quais dispomos. A difusão da micro e minigeração, que possui potencial de contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor, depende da eliminação de diversos entraves ao seu desenvolvimento, a começar pelas distorções provocadas pelo regime tributário em vigor. Se quisermos possuir um setor elétrico que nos ofereça energia limpa e segurança de abastecimento há muito a ser feito, a começar pela inserção de mais geração descentralizada.
Fonte:http://infopetro.wordpress.com/